A financeirização da burocracia sindicalno Brasil
Álvaro Bianchi e Ruy Braga
Desde a eleição de Lula da Silva, em 2002, a relação do sindicalismo brasileiro com o
aparelho de Estado modificou-se radicalmente. Nunca é demais rememorar alguns fatos.
Em primeiro lugar, a administração de Lula da Silva preencheu aproximadamente
metade dos cargos superiores de direção e assessoramento – cerca de 1.300 vagas, no
total – com sindicalistas que passaram a controlar um orçamento anual superior a R$
200 bilhões. Além disso, posições estratégicas relativas aos fundos de pensão das
empresas estatais foram ocupadas por dirigentes sindicais. Vários destes assumiram
cargos de grande prestígio em companhias estatais – como, por exemplo, a Petrobrás e
Furnas Centrais Elétricas –, além de integrarem o conselho administrativo do BNDES.
O governo Lula promoveu, ainda, uma reforma sindical que oficializou as centrais
sindicais brasileiras, aumentando o imposto sindical e transferindo anualmente cerca de
R$ 100 milhões para estas organizações.
Tudo somado, o sindicalismo brasileiro elevou-se à condição de um ator estratégico no
tocante ao investimento capitalista no país. Esta função, não totalmente inédita, mas
substancialmente distinta daquela encontrada no período anterior, estimulou Francisco
de Oliveira a apresentar, ainda no início do primeiro governo de Lula da Silva, sua
hipótese acerca do surgimento de uma “nova classe” social baseada na articulação da
camada mais elevada de administradores de fundos de previdência complementar com a
elite da burocracia sindical participante dos conselhos de administração desses
mesmos fundos.
Na opinião de Oliveira, a aproximação entre “técnicos e economistas doublés de
banqueiros” e “trabalhadores transformados em operadores de fundos de
previdência” serviria para explicar as convergências programáticas entre o PT e o
PSDB e compreender, em última instância, o aparente paradoxo de um início de
mandato petista que, nitidamente subssumido ao domínio do capital financeiro,
conservou o essencial da política econômica estruturada pelos tucanos em torno do
regime de metas de inflação, do câmbio flutuante e do superávit primário nas contas
públicas.[1]
Ao mesmo tempo em que Oliveira avançava a tese da “nova classe”, apresentamos a
hipótese de que o vínculo orgânico “transformista” da alta burocracia sindical com os
fundos de pensão poderia não ser suficiente para gerar uma “nova classe”, mas
seguramente pavimentaria o caminho sem volta do “novo sindicalismo” na direção do
regime de acumulação financeiro globalizado. Apostávamos que essa via liquidaria
completamente qualquer possibilidade de retomada da defesa, por parte desta
burocracia, dos interesses históricos das classes subalternas brasileiras. Chamamos esse
processo de “financeirização da burocracia sindical”.[2]
Assim como várias análises críticas do governo do Partido dos Trabalhadores o
problema da hipótese da “nova classe” era explicar como se chegou até esse ponto. Não
foram poucos os analistas que acreditaram que a Carta ao Povo Brasileiro, na qual Lula
da Silva garantia a segurança dos operadores financeiros, teria modificado de modo
radical o curso seguido até então pelo PT e seu candidato. A tese de uma transformação
abrupta e imprevista só poderia encontrar apoio na ingenuidade do analista ou na sua
incapacidade de enxergar as óbvias mudanças que se processavam nesse partido. A
hipótese da “financeirização da burocracia sindical” enfrentava esse problema e
localizava sua origem em uma burocracia sindical presente no partido desde seus
primeiros passos no ABC paulista e que ao longo dos anos 1990 associou-se
gradativamente ao capital financeiro. A trajetória do PT só surpreendeu quem não quis
ver ou ouvir.
A história recente da burocracia do Sindicato dos Bancários de São Paulo é exemplar.
Como muitas entidades filiadas à CUT, a dos bancários de São Paulo alinhou-se com a
administração Lula da Silva, transformando-se em porta-voz do governo na categoria.
Em todas as situações nas quais os trabalhadores enfrentaram o governo, a diretoria
dessa entidade procurou colocar-se na condição de amortecedor do conflito social,
papel desempenhado pelos tradicionais pelegos sindicais. No jornal e nas revistas do
Sindicato a propaganda do governo dá o tom.[3] O “Sindicato cidadão” deu lugar ao
“Sindicato chapa-branca”.
Este não é, entretanto, um caso de simples adesismo. É possível dizer que a cúpula dos
bancários de São Paulo foi o principal meio de ligação da aliança afiançada por Lula da
Silva entre a burocracia sindical petista e o capital financeiro. Na verdade, como
previmos, o cimento desse pacto foram os setores da burocracia sindical que se
transformaram em gestores dos fundos de pensão e dos fundos salariais. O Sindicato
dos Bancários de São Paulo forneceu os quadros políticos para essa operação. Enquanto
os sindicalistas egressos das fileiras dos metalúrgicos do ABC ocupavam-se da política
trabalhista e Luiz Marinho tomava assento no Ministério do Trabalho, os bancários de
São Paulo voavam em direção ao mercado financeiro.
Pontos importantes de nosso argumento foram corroborados pela pesquisa de Maria
Chaves Jardim que revelou a existência do que chamou de “elite sindical de fundos de
pensão”. Os principais expoentes dessa elite seriam Luiz Gushiken, Ricardo Berzoini e
Adacir Reis. Segundo a pesquisadora, “os membros dessa ’elite’ são oriundos do setor
bancário de São Paulo, e fazem parte do núcleo formulador das políticas do PT;
passaram pela FGV/SP, são de origem social de classe média, do sexo masculino,
considerados brancos e heterossexuais.”[4] A esta lista seria possível acrescentar o
nome dos ex-sindicalistas Sérgio Rosa e Gilmar Carneiro, este último também egresso
da FGV.
As pretensões dessa “nova elite” eram antigas. Gilmar Carneiro, presidente do sindicato
entre 1988 e 1994, declarou quando ainda era diretor do Sindicato dos Bancários, que ao
fim de seu mandato poderia ser diretor do Banco do Estado do Rio de Janeiro do qual
havia sido funcionário. Seu sonho não foi realizado, mas, logo a seguir, Carneiro
transformou-se em diretor de um dos braços financeiros do Sindicato, a Cooperativa de
Crédito dos Bancários de São Paulo. Seu predecessor Luiz Gushiken, presidente de
1985 a 1987, foi mais longe. No começo dos anos 2000, Gushiken mantinha a empresa
Gushiken & Associados, juntamente com Wanderley José de Freitas e Augusto Tadeu
Ferrari. Com a vitória de Lula da Silva a companhia mudou de nome e passou a se
chamar Globalprev Consultores Associados. O ex-bancário retirou-se da empresa e
coincidentemente esta passou, logo a seguir, a fazer lucrativos contratos com os fundos
de pensão.[5] Tornou-se, assim, eminência pard a dos fundos de pensão estatais sendo
decisivo para a indicação do comando do fundo de pensão dos funcionários do Banco
do Brasil, a Previ, da Petrobras, a Petros, e da Caixa Econômica Federal, a Funcef.
O sucessor de Gushiken e Carneiro, Ricardo Berzoini, tem também sólidos laços com o
sistema financeiro. Foi ele o promotor da reforma da previdência, que além de retirar
direitos dos trabalhadores abriu o caminho para instituição da previdência
complementar. Os fundos de pensão estatais e privados foram os grandes beneficiados
por essa medida. Berzoini tem sido recompensado. Levantamento feito pelo jornal
Folha de S. Paulo em 2009 constatou que 43 diretores de fundos de pensão tem
vínculos com partidos políticos, a maioria deles com o PT. Desses diretores 56%
fizeram doações financeiras a candidatos nas últimas quatro eleições e o então
presidente nacional do PT, Ricardo Berzoini, recebeu quase um terço delas.[6]
A conversão de dirigentes sindicais em gestores financeiros tem um caso exemplar:
Sérgio Rosa. Este gestor começou sua carreira como funcionário do Banco do Brasil,
integrando a diretoria do Sindicato dos Bancários de São Paulo na gestão de Luiz
Gushiken. Em 1999, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, Rosa assumiu
um cargo de diretor da Previ, representando os funcionários do banco. Com a posse de
Lula da Silva, passou à posição de presidente da Previ, comandando o maior fundo de
pensão da América Latina e o 25º do mundo em patrimônio. Após o final de seu
mandato assumiu o comando da Brasilprev, a empresa de previdência aberta do Banco
do Brasil. Em janeiro de 2011, aos 50 anos, Rosa aderiu ao “programa de desligamento
de executivos” do BB e se aposentou.[7]
A financeirização da burocracia sindical é um processo que divide
fundamentalmente a classe trabalhadora e enfraquece a defesa de seus interesses
históricos. Na condição de gestores dos fundos de pensão, o compromisso principal
deste grupo é com a liquidez e a rentabilidade de seus ativos. Muitos têm
argumentado que os fundos teriam um papel importante na seleção de
investimentos ecologicamente sustentáveis e geradores de empregos. Pura
enganação.
Os fundos de pensão brasileiros têm atuado como uma linha estratégica do processo de
fusões e aquisições de empresas no país e, conseqüentemente, estão financiando o
processo de oligopolização econômica com efeitos sobre a intensificação dos ritmos de
trabalho, o enfraquecimento do poder de negociação dos trabalhadores e o enxugamento
dos setores administrativos. Isso sem mencionar sua crescente participação em projetos
de infraestrutura, como a usina de Belo Monte, uma das principais fontes de
preocupação dos ambientalistas brasileiros.[8]
Tendo em vista a natureza semiperiférica de sua estrutura econômica, o Brasil apresenta
importantes dificuldades relativas ao investimento de capital. A taxa de poupança
privada é historicamente baixa e a solução para o investimento depende
fundamentalmente do Estado. Os fundos de pensão atuam nesta linha, buscando
equacionar a relativa carência de capital para investimentos. O curioso é que, no período
atual, a poupança do trabalhador, administrada por burocratas sindicais oriundos do
novo sindicalismo, está sendo usada para financiar o aumento da exploração do trabalho
e da degradação ambiental.
Notas:
[1] Francisco de Oliveira. Critica a razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo,
2003, p 147.
[2] Alvaro Bianchi; Ruy Ruy. Brazil: The Lula Government and Financial
Globalization. Social Forces, Chapel Hill, v. 83, n.4, p. 1745-1762, 2005.
[3] O site do Sindicato dos Bancários de São Paulo parece uma peça de campanha
eleitoral. Em 2011 podia se ler nele: “A estabilidade econômica, com crescimento
médio de 3,6% da economia a cada ano desde 2002 e a criação, no mesmo período, de
10,8 milhões de novos postos de trabalho no mercado formal, reforçaram o poder dos
trabalhadores e deram base para a política de valorização do salário mínimo e da
correção da tabela do IR, entre outros avanços importantes garantidos durante os oito
anos do governo Lula.”
[4] Maria Chaves Jardim. “Nova” elite no Brasil? Sindicalistas e ex-sindicalistas no
mercado financeiro. Sociedade e Estado. Brasília, v. 24, n. 2, 2009.
[5] Ronaldo França. Ação entre amigos. Veja, n. 1912, 6 jul. 2005 e Fundos de pensão
contratam antigos sócios de Gushiken. Folha de S. Paulo, 3 jul. 2005, Primeiro Caderno,
p. 12. Há indícios de que a influência de Gushiken não diminuiu após sua saída do
governo. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo: da “lista dos dez maiores fundos de
pensão de estatais brasileiras, seis estão sob comando do PT e a maioria deles ainda é
dirigida por apadrinhados dos ex-ministros petistas José Dirceu e Luiz Gushiken, que
deixaram o governo há quase quatro anos, em meio ao escândalo do mensalão.” (Dirceu
e Gushiken ainda dão as cartas nos fundos. O Estado de S. Paulo, 4 mar. 2009.)
[6] Ranier Bragon. PT tem diretores em 7 dos 10 maiores fundos. Folha de S. Paulo, 8
mar. 2009.
[7] Um relato minucioso da trajetória de Rosa pode ser lido em Consuelo Dieguez.
Sérgio Rosa e o mundo dos fundos. Revista Piauí, São Paulo, n. 35 agosto de 2009.
[8] Aliás, o silêncio da CUT a respeito das greves operárias nas obras do PAC,
especialmente em Jirau, sem mencionar sua completa inação após o anúncio da empresa
Camargo Corrêa de demitir 4.000 trabalhadores, poucas horas depois de um acordo
coletivo com a mesma empresa ter sido celebrado pela central, obviamente não são
produtos de sua súbita inexperiência à mesa de negociação. Muito ao contrário: a
iminência de grandes eventos como a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas do
Rio, em 2016, aumenta exponencialmente a demanda por investimentos em
infraestrutura que dependem fundamentalmente do capital estatal e dos fundos salariais.
Desde que não hajam atrasos nas obras, o que implica, naturalmente, a “pacificação”
dos canteiros e a supressão de movimentos grevistas, trata-se de lucro líquido e certo
para a burocracia sindical financeirizada. Ainda que às custas da crescente degradação
das condições de trabalho nos canteiros de obras.