A Lei 13.954 criou desigualdade salarial entre militares iguais. Veja como a reforma militar gerou uma casta invisível, afetando 30 mil inativos.

Hierarquia e disciplina na vida militar não são apenas peças chave de coesão da tropa. Elas são também parte de regras de convivência que regem os militares mesmo fora do serviço ativo. Militares iguais, isto é, militares de mesmo posto (oficiais) ou mesma graduação (suboficiais) são iguais inclusive na questão remuneratória. Um capitão ou sargento não tem maior salário do que outro capitão ou outro sargento. São iguais nas suas diferenças. Isso perpetua a hierarquia, mantém a disciplina e cultiva a ordem, mesmo na reserva remunerada. Mas isso mudou bastante e não parece que essa desordem será desfeita.
A Lei nº 13.954, de 16 de dezembro de 2019, assinada pelo então presidente Jair M. Bolsonaro, prometeu modernizar as carreiras militares das Forças Armadas Brasileiras, com foco especial na Força Aérea Brasileira (FAB) e na Marinha do Brasil.
Contudo, essa reestruturação, inicialmente vista como uma avanço inédito na valorização profissional, revelou-se um foco de desordem estrutural.
As fissuras da Lei 13.954 vistas em perspectiva
A Revista Sociedade Militar, ao longo desses cinco anos, documentou exaustivamente essas fissuras, com artigos que expuseram a realidade do divisor de águas que foi essa lei.
Um caso emblemático foi uma matéria que denunciou como a própria ferramenta de inteligência artificial da FAB reconheceu a “desigualdade salarial entre ativos e inativos”, admitindo que mudanças na lei criaram lacunas afetando reservistas.
Essa confissão tecnológica expôs a fragilidade da norma, que ignora a continuidade da carreira militar – ativa ou reserva, o serviço é uno.
Inteligência artificial expõe discriminação salarial camuflada
O que começou como uma reforma para equiparar competências gerou paradoxalmente uma quebra de equidade, abalando a hierarquia militar em suas bases financeiras.
Suboficiais na ativa passaram a receber um adicional por cursos de altos estudos, avaliado em cerca de R$ 2 mil mensais, enquanto milhares na reserva, transferidos para a inatividade antes da lei, ficaram à margem do benefício.
Essa interrupção gerou uma “lacuna salarial” que desordenou os princípios basilares de hierarquia e de isonomia nas Forças Armadas. Militares iguais passaram a ser diferentemente recompensados.
Na prática, ao criar um bônus para os ativos, a Lei nº 13.954, demarcou artificialmente uma nova graduação hierárquica. Criou-se um degrau hierárquico (financeiro) entre o sargento e o suboficial que recebe os altos estudos.
A norma inaugurou uma era de desigualdades remuneratórias profundas, dividindo militares de mesma graduação e tempo de serviço em “círculos privilegiados” e “círculos excluídos”.
O paradoxo da modernização: a reforma que criou uma casta financeira
Promulgada em meio a negociações com o Congresso Nacional, a Lei nº13.954 alterou o Estatuto dos Militares (6.880/1980) e introduziu inovações como o Adicional de Habilitação (ADHAB), vinculado a cursos de formação avançada.
Para suboficiais da FAB e da Marinha, foram estabelecidos dois círculos distintos.
O primeiro, composto por praças na ativa a partir de 2019, que acessaram cursos de altos estudos e incorporaram adicionais remuneratórios progressivos – de 20% a 73% sobre o soldo, pagos em quatro parcelas anuais entre 2020 e 2023.
O segundo círculo abrange suboficiais já na reserva, especialmente aqueles que se transferiram entre 2001 e 2019, período em que não existiam esses cursos específicos.
Esses últimos militares, muitos com décadas de serviço dedicado, não tiveram a retroatividade do benefício, apesar de patentes equivalentes às dos ativos “privilegiados”.
Dois círculos: privilégio para ativos, exclusão para inativos
Documentos oficiais da FAB, como portarias normativas, listam cursos como o de Aperfeiçoamento de Sargentos (CAS) e de Habilitação como qualificadores, mas excluem explicitamente os inativos da majoração.
Essa divisão artificial, segundo análises jurídicas, fere o artigo 5º da Constituição Federal, que garante igualdade perante a lei.
A implementação acelerada, sem estudos atuariais profundos, foi objeto de crítica interna pelo próprio Ministério da Defesa. Um documento reservado, revelado pela Sociedade Militar, alertava para riscos de judicialização e “urgência irresponsável” na tramitação, prevendo exatamente o caos remuneratório atual.
Violação constitucional: documentos da FAB excluem inativos
A disparidade é gritante: um suboficial sargento na ativa, no círculo I, acumula três gratificações superiores – Adicional de Disponibilidade, Adicional Especifico e o polêmico Adicional de Altos Estudos –, elevando sua remuneração líquida em até 40% acima dos pares (militares iguais) na reserva do círculo II.
Para reservistas da “lacuna temporal” (2001-2019), o soldo base congela em patamares inferiores, sem reajustes proporcionais, impactando pensões e proventos vitalícios.
Estima-se que mais de 30 mil suboficiais da FAB e da Marinha sejam sujeitos a essa exclusão, famílias inteiras afetadas por uma reforma que privilegiou o presente em detrimento do passado recente.
Além dos números, o impacto psicológico é sensível. Militares da reserva relatam sentimento de traição institucional, com relatos de “militares iguais, salários diferentes” ecoando em associações de classe e redes sociais monitoradas pela Sociedade Militar.
A hierarquia, pilar da disciplina castrense, racha quando o contracheque revela castas invisíveis.
STF acumula 1 mil ações sobre Lei 13.954, mas desigualdade persiste
Não demorou para as demandas chegarem aos tribunais. O Supremo Tribunal Federal (STF) acumula mais de 1.000 ações relacionadas à Lei 13.954, questionando adicionais de disponibilidade e habilitação negados a inativos.
Acórdãos do TCU, como o 1172/2024, analisam os custos bilionários da reforma, mas não resolvem a isonomia. Advogados militares argumentam inconstitucionalidade, citando precedentes como a Súmula Vinculante 50 do STF, que proíbe punições retroativas – princípio aplicável analogamente à remuneração.
Especialistas em direito castrense defendem que a lei concede “tratamento diferenciado” indevido, violando a paridade ativa-inativa prevista na Emenda Constitucional 103/2019 (Reforma da Previdência).
A desordem se agrava com reajustes recentes: enquanto ativos “celebram” ganhos de 9% em 2025, reservistas da lacuna veem proventos estagnados.
A erosão da hierarquia pelo avesso do contracheque
A essência das Forças Armadas reside na hierarquia e disciplina, valores insculpidos no Estatuto dos Militares. Contudo, salários desiguais corroem essa estrutura por dentro.
Suboficiais da reserva, com fardas penduradas, mas lealdade intacta, questionam: por que o mérito de ontem vale menos que o de hoje?
A Revista Sociedade Militar alerta que essa fissura pode minar o moral, especialmente num contexto geopolítico tenso, com Brasil no centro de disputas EEUU-China na América do Sul.
Fonte https://www.sociedademilitar.com.br/