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Financeirização, neoliberalismo e captura do Estado: uma tríade antidesenvolvimento do Brasil

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As origens da financeirização, a expansão e a forma como afeta os países periféricos. Por Miguel Bruno

1. Introdução¹

“A existência de poupança corrente externa às firmas, realizada pelas pessoas que vivem de rendas, tende a deprimir o investimento (produtivo) e, portanto, a diminuir o desenvolvimento econômico no longo prazo”.(Michal Kalecki, Teoria da Dinâmica Econômica, 1954)

O conceito de financeirização surge nos anos 1990, quando países centrais e periféricos aderem aos mercados globais por meio de processos de liberalização comercial e financeira, promovidos por organismos internacionais, tais como o Banco Mundial e FMI. Difundindo a globalização como uma espécie de senha de entrada num mundo pleno de vantagens econômicas e sociais irrecusáveis, a ideologia neoliberal veiculada por esses organismos cumpriu nessa época um de seus principais objetivos: reformular as relações Estado-economia para instituir um novo padrão de inserção internacional dos países em conformidade com os interesses da acumulação rentista-financeira dos capitais no plano nacional e internacional.

Passada a euforia criada pela propaganda oficial e midiática, o mundo ainda continua aguardando as benesses da globalização, que muito prometeu, mas muito pouco entregou em termos de desenvolvimento e bem-estar social para as populações cujas economias foram globalizadas. E, desde então, tem sido crescente a aplicação do conceito de financeirização em Ciências Sociais para se compreender as causas e os efeitos desse fenômeno sobre o desenvolvimento socioeconômico e proporcionar subsídios para mudanças políticas e institucionais que possam superá-lo em favor do bem-estar social.

Originária de composição por aglutinação, a palavra “financeirização” (= financeiro + ação) busca expressar o processo, ato ou efeito de levar as finanças, em sua lógica, natureza e meios característicos de valorização, a outros espaços de valorização mercantil não-financeira, que o sistema capitalista cria e reproduz incessantemente. Apesar de atravessarem canais não-monetários e não-financeiros, as operações financeiras permanecem, na grande maioria das vezes, materializadas em ativos cuja liquidez e rentabilidade são superiores à maioria dos ativos fixos necessários às operações nos setores diretamente produtivos. E se esses ativos financeiros oferecerem menores riscos e maiores taxas de rentabilidade real do que os ativos de capital fixo, o desestímulo ao investimento produtivo será predominante no ambiente macroeconômico.

2. Financeirização: as origens históricas de um fenômeno estrutural

“Há sempre uma alternativa à propriedade de capital real, notadamente, a propriedade de moeda e dívidas”.(John Maynard Keynes, A Teoria Geral)

Após o término da Segunda Guerra em 1945, os países da OCDE conheceram um longo período de prosperidade econômica com forte redução das desigualdades de renda e riqueza. As instituições do Estado de bem-estar social puderam se expandir e se legitimar como fatores fundamentais da garantia dos direitos sociais. Esse período ficou conhecido na literatura internacional como o período fordista da Golden Age do capitalismo ou os “Trinta gloriosos” anos de elevação continuada dos níveis de vida (Jean Fourastié, 1979), ao menos para os países centrais. Mas, a partir da segunda metade dos anos 1970, o modelo econômico motor da prosperidade localizada nos países ricos se esgota e entra em crise estrutural.

Análises das causas estruturais dessa crise revelaram que, a partir de 1968, os ganhos de produtividade começaram a diminuir, levando à queda da lucratividade dos capitais investidos nos setores industriais, desacelerando as economias e conduzindo à estagnação (Boyer, 2015; Lipietz, 1992; Aglietta, 1977). O choque do petróleo de 1973, considerado pela interpretação convencional como a causa dessa crise, foi na realidade um fator de reforço das condições endógenas que deslocaram as economias para fora da trajetória de prosperidade. Nesse sentido, a elevação dos preços energéticos conjugou-se com a crise de produtividade e elevou rapidamente as taxas de inflação. A conjuntura macroeconômica estagflacionista estava assim configurada. Com custos de produção crescentes e demanda em retração, os capitais foram empurrados de forma ainda mais intensa em direção aos ativos líquidos ofertados pelos mercados financeiros internacionais, articulados sob a hegemonia do dólar estadunidense.

Como saída para os bloqueios impostos pela crise à continuidade do processo de acumulação capitalista no centro, os grandes capitais transnacionais vão promover, no plano político-institucional, um ataque essencialmente ideológico contra o Estado de bem-estar social, às regras do sistema monetário internacional estabelecidas pelo acordo de Breton Woods e às políticas keynesianas pró-crescimento e geração de emprego. Em consequência, a década de 1980 será marcada pela investida do neoliberalismo, inicialmente sob os governos Thatcher na Inglaterra e Reagan nos EUA, mas ao longo da década de 1990, amplamente disseminada sob o slogan da globalização.

Nesse contexto ideológico e sob pressão do grande capital financeiro internacional e de seus governos títeres, os países periféricos, como o Brasil, vão abrir suas economias de forma acrítica e açodada, pois sem projeto nacional e soberano de desenvolvimento. Implantavam com isso modelos econômicos completamente dependentes dos capitais estrangeiros, em particular, da alta finança internacional com seus interesses rentistas e operações especulativas.

Esta é a origem dos processos de financeirização que se espalhou pelo mundo, graças ao advento das novas tecnologias da comunicação e da informação que permitiu a formação de mercados globais sob tutela dos interesses geopolíticos e geoeconômicos dos EUA. Com praticamente todos os canais financeiros internacionais controlados por Washington, a economia desse país se torna, na década de 1990, a mais financeirizada do mundo (Boyer, 2000). Fato que lhes permitiu até a atualidade subordinar e controlar os mercados bancário-financeiros tanto dos países europeus quanto os da América Latina e de demais regiões do mundo.

Nessa perspectiva, foram as transformações organizacionais e institucionais (fim do sistema monetário internacional de Bretton Woods, desregulação comercial e financeira etc.) decorrentes do esgotamento e crise do modo de desenvolvimento fordista que, ao impactarem um número significativo de empresas e setores de atividade econômica, permitiram que as condições de revalorização dos capitais por canais financeiros se tornassem mais atrativas, em termos de rentabilidade, risco e liquidez, comparativamente àquelas oferecidas pelas atividades diretamente produtivas. Portanto, dizer que a expansão financeira que levou à proeminência do capital financeiro a partir da crise dos regimes fordistas é simplesmente um fenômeno inerente e esperado da dinâmica de longo prazo do capitalismo, sem maiores consequências para o funcionamento desse sistema, é desconsiderar os graves problemas econômicos e sociais trazidos por essa transformação de ordem qualitativa na acumulação capitalista.

Uma das características dessa reação equivocada à crise do modelo econômico do pós-guerra foi a chamada política do trickle-down (em tradução literal, “gotejamento”) baseada numa teoria econômica sem fundamento empírico de que as desonerações fiscais específicas para empresas e classes de alta renda poderiam criar um efeito benéfico que se espalharia por toda a economia e sociedade, pois contribuiria para aumentar o investimento produtivo, motor do crescimento econômico e da geração de emprego e renda.

Como destacou Streek (2013)², sob um discurso vazio de comprovação científica, portanto, essencialmente ideológico, os Estados nacionais reduziram a tributação sobre os ricos, aos quais sempre foram credores, passando à condição de devedores ao se financiar, prioritariamente, por endividamento público interno. Contudo, a desoneração dos ricos, articulando-se com os processos de liberalização comercial e financeira, aprofundou ainda mais a captura dos Estados nacionais, tanto centrais quanto periféricos, pelos interesses da revalorização rentista e financeira dos capitais em uma escala global sem precedentes históricos.

Passados mais de 40 anos, pode-se concluir que a política neoliberal do trickle-down revelou-se o que sempre fora em sua essência, um discurso manipulador para convencer a população da importância de se reduzir a carga fiscal sobre as classes mais ricas, para viabilizar um rápido e garantido retorno à prosperidade geral. Mas o que os estudos revelaram foi o intenso aumento da concentração de renda e riqueza, observada desde o fim da Golden Age, em grande parte explicada pelo questionamento neoliberal às políticas sociais e às instituições do welfare-state (Piketty, 2014). Agravou-se a regressividade da tributação em várias partes do mundo, reduzindo a participação dos salários no PIB e deteriorando as condições de vida mesmo em países já desenvolvidos, como os EUA e a Europa.

O caminho para a austeridade fiscal e o cancelamento ideológico das políticas desenvolvimentistas fora aberto e ainda continua, marcadamente, nos países periféricos como o Brasil. Porém as medidas de desonerações de empresas e elites econômicas nunca entregaram o que sempre prometeram: estabilidade macroeconômica para além da financeira e inflacionária stricto sensu, retorno à prosperidade com elevação do bem-estar social.

Em primeiro lugar, porque a desconstrução da institucionalidade do modelo econômico do pós-Segunda Guerra, promovida pela investida neoliberal dos anos 1980 e 1990, empurrou os capitais para o setor bancário-financeiro, reduzindo significativamente sua presença no setor produtivo, onde as imobilizações em capital fixo, apesar de imprescindíveis à produção e à geração de emprego e renda, implicam maior risco e perda de liquidez.

Em segundo lugar, porque as grandes empresas do setor produtivo aliaram-se aos capitais financeiros em sua veloz e agressiva investida contra as demandas das classes médias e operárias, para as quais a manutenção das estruturas do Estado social são fundamentais para a preservação de seus níveis de vida. Por essa razão, os economistas neoliberais, que em sua ampla maioria atuam para os mercados bancário-financeiros, passam a questionar recorrentemente os gastos públicos sociais e as ações pró-desenvolvimento como populistas e geradoras de inflação e instabilidades.

É nesse contexto de superação da crise estrutural dos anos 1970 e de seus desdobramentos nas décadas subsequentes que se iniciam os processos de financeirização das economias centrais e periféricas. Se, a partir dos anos 1980, constituíram numa alternativa para os capitais debilitados pela crise do modelo econômico dos “anos dourados”; desde os anos 1990, tornaram-se uma estratégia eficiente para subordinar países, capturando seus Estados nacionais e impondo políticas econômicas e configurações institucionais convenientes aos interesses geopolíticos dos EUA e de seus aliados europeus. Por esta razão, a financeirização da economia brasileira não é um fenômeno novo, pois já nos anos 1980, se podia observar a primeira fase desse processo com a crise da dívida externa e sua articulação com a revalorização dos capitais especulativos de curto prazo na assim chamada “ciranda financeira”, uma das marcas da submissão do Estado, característica dessa década.

3. Captura do Estado e endividamento público improdutivo

“Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois a soma emprestada é convertida em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que continuam a funcionar em suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro sonante. Porém, abstraindo a classe de rentistas ociosos assim criada e a riqueza improvisada dos financistas, a dívida do Estado fez prosperar o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia.”(K. Marx. O Capital, 1867)

3.1 A questão do endividamento público (e do privado)

De acordo com os manuais de Teoria Macroeconômica ensinados tanto no Brasil quanto no resto do mundo, em todas as graduações em Ciências Econômicas, a emissão de títulos públicos em operações no open market teria por objetivo essencial o controle da liquidez da economia. Se há mais dinheiro em circulação do que o necessário para o funcionamento da economia (caso em que a quantidade de moeda supera a quantidade de bens e serviços ofertados), para, supostamente, evitar pressões inflacionárias de demanda, o governo, através do Banco Central, emitirá títulos da dívida pública e os venderá aos bancos privados a fim de retirar a moeda em excesso nos mercados ou o que é o mesmo, diminuir a liquidez da economia.

Inversamente, se há menos dinheiro do que o necessário face à quantidade de bens e serviços ofertados, para evitar possíveis contrações do PIB pela dificuldade de realizar transações mercantis por falta de meios de pagamentos, o governo comprará esses títulos pagando-os em moeda corrente para restabelecer a liquidez necessária ao bom funcionamento da economia. Essa tem sido a narrativa comum, a vulgata difundida aos alunos de graduação em Ciências Econômicas e repercutida por “economistas de mercado (financeiro)”, como se a preocupação da alta finança se resumisse à gestão de liquidez pelo que isso representa para o “bom funcionamento” da economia e bem-estar de todos.

Embora as operações de open marketing envolvendo compra e venda de títulos da dívida pública possam ser funcionais à gestão da liquidez, sua prática com taxas exorbitantes de juros reais deslocam a função da política monetária para outro campo. A convertem num instrumento tácito e eficaz para a drenagem de recursos orçamentários realimentando o endividamento público improdutivo às expensas dos demais setores da economia, especialmente, daqueles que dependem da produção e, portanto, de imobilizar capital, incorrendo em perda de liquidez e maiores riscos.

Em estudos recentes, Bruno (2021) e Bruno & Caffe (2017) mostraram que a modalidade de financeirização na economia brasileira difere do padrão observado em economias desenvolvidas como a dos EUA. Como no Brasil as taxas reais de juros permanecem em níveis inusitados quando comparadas à média internacional, a renda de juros reais capitalizada (capitalização composta) converte os títulos e fundos de renda fixa no paraíso do rentismo, freando a expansão dos títulos de renda variável, essência do mercado de ações. Por essa razão, pode-se classificar esse tipo de financeirização como financeirização usurária, para diferenciá-la do tipo observado nos países em que vigoram baixas taxas de juros reais, especialmente, aquelas que remuneram os títulos da dívida pública.

Na primeira fase da financeirização da economia brasileira, nos anos 1980, a acumulação rentista-financeira baseava-se nos ganhos inflacionários obtidos na chamada “ciranda financeira”, expressão do processo especulativo de curto prazo com os títulos públicos. Mas, com a adesão aos mercados financeiros globais nos anos 1990, a financeirização brasileira atinge um novo patamar. Além de expandir o endividamento público interno, promoveu de forma acelerada o endividamento privado de famílias e de empresas não-financeiras devido às elevadíssimas taxas de juros reais, de tal modo que cerca de 76,6% das famílias encontram-se endividadas, e 30%, inadimplentes.³

Cabe observar que, se em países de baixas taxas de juros reais, os bancos dão preferência à concessão de empréstimos e financiamentos ao setor público, pois o risco de crédito é muito menor face ao observado no setor privado, em países de taxas de juros reais extremamente elevadas, como o Brasil, esse comportamento atinge um paroxismo e puxa para cima o custo do crédito às famílias e às empresas não-financeiras. Isso ocorre porque os capitais obviamente não podem estar em dois setores diferentes ao mesmo tempo e no mesmo montante. Se há excesso de recursos alocados em ativos financeiros, haverá escassez de recursos para as imobilizações em capital fixo fundamentais às atividades-fim do setor produtivo, o que elevará demasiadamente o custo dos empréstimos e financiamentos de que necessita.

Estudos recentes também mostraram que a direção de causalidade vai das taxas de juros para a inadimplência e para a dívida pública e não o contrário como difundido pela vulgata neoliberal e monetarista (Bruno, 2021; Bruno & Caffe, 2017). Em outros termos, a dívida pública cresce devido aos aumentos das taxas de juros reais em capitalização composta sobre os títulos públicos e não porque o governo expande os gastos com sua própria população, o que seria inclusive legítimo e desejável para o desenvolvimento social e econômico do país.

3.1.1 Política monetária pautada pela alta finança usurária nacional e estrangeira

Quando analisamos a política monetária no Brasil, observamos que a gestão da liquidez tem sido no sentido de restringi-la em demasia para manter a taxa de juros Selic elevada. A medida governamental conexa é a chamada política de esterilização de divisas de modo a manter a taxa de câmbio efetiva real em níveis que contribuam para a estabilidade inflacionária, mas também e sobretudo reduzir os custos das remessas de lucros, juros e dividendos ao exterior, realizadas pelas empresas estrangeiras em território brasileiro. Estas empresas recebem os pagamentos por sua produção de bens e serviços em reais e precisam enviar em dólares suas receitas às matrizes no exterior. Uma depreciação real da taxa de câmbio imporá um custo de transação muitas vezes não reembolsável, mesmo que se protejam no mercado de derivativos cambiais. Então, a manutenção por parte do governo de um padrão de liberalização financeira com mercado de derivativos profundo pressiona o BCB para que sempre garanta taxas de juros reais muito altas em comparação às praticadas no exterior.

É necessário se compreender que na década de 1990 o Brasil aderiu aos processos de liberalização comercial e financeira de maneira acrítica e subordinada aos interesses da alta finança internacional que já vinha operando em mercados financeiros e de comércio globais. Entretanto, o Brasil poderia, àquela época, viabilizar um modelo econômico exportador de produtos com maior intensidade tecnológica, que lhe permitiria produzir bens com muito maior valor agregado, para alavancar seu processo de desenvolvimento socioeconômico. Mas o modelo selecionado pelas elites que controlavam o Estado brasileiro, e que foi de fato implementado durante os governos do PSDB nos anos 1990, resultou de uma imposição do capital bancário-financeiro nacional em sua imbricação estrutural e subordinada ao capital financeiro internacional controlado pela nação hegemônica, os EUA. Destaque-se que, atualmente, mais de 70% da pauta de exportações brasileiras são commodities (metálicas, agrícolas e energéticas) de baixo valor agregado, configurando-se num retorno ao século 19 com a tecnologia do 21.

3.1.2 Banco Central do Brasil: autônomo em relação ao governo eleito, mas gestor cativo dos interesses da alta finança usurária nacional e estrangeira

Guardião da estabilidade inflacionária e financeira, mais pelo que ela representa para a acumulação rentista-patrimonial do que pelo que poderia significar para o setor produtivo e para a maioria da sociedade brasileira que vive dos rendimentos do trabalho assalariado, caso fosse obtida num ambiente de negócios com baixas taxas de juros reais, o BCB já não se constrangia em proceder a aumentos da Selic antes de sua autonomia legal, muito menos agora quando foi conquistada e instituída.

Nesse contexto, sua independência formal, em seus termos legais, manteve somente como objetivo fundamental o controle da inflação. Apesar de prever ações para fomentar o pleno emprego, não menciona metas explícitas de crescimento econômico, tão somente “suavizar as flutuações do nível de atividade”, mas “sem prejuízo de seu objetivo fundamental”. Em outros termos, caso julgue necessário elevar as taxas de juros e sacrificar o crescimento econômico e a geração de emprego, isso será feito sem constrangimentos, tanto sob o argumento de manter a inflação dentro da meta, quanto para satisfazer as demandas de rentabilidade real dos capitais nacionais e estrangeiros de curto prazo. No Brasil, esses interesses têm sido veiculados pelo centro financeiro paulista da Faria Lima, seu “quartel-general” e pela grande mídia venal, controlada pela alta finança usurária que assedia o Estado nacional brasileiro e seu governo democraticamente eleito para que responda prontamente às suas demandas, mesmo que impliquem sacrifício de toda a população.

Observe-se os termos precisos em que a Lei Complementar 179, de 24/2/2021 estabelece essa autonomia, que não poderia ter a pretensão de ter como corolário, seja de um ponto de vista lógico seja econômico, sua autonomia também em relação às pressões das elites rentistas e do setor bancário-financeiro. É no mínimo curioso que seus defensores, em geral neoliberais e monetaristas, nunca falem nada sobre a autonomia que, sob essa lei, possa concretamente desfrutar em relação às pressões advindas da alta finança nacional e estrangeira:

“Art. 1º O Banco Central do Brasil tem por objetivo fundamental assegurar a estabilidade de preços. Parágrafo único. Sem prejuízo de seu objetivo fundamental, o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. (…)”

Da leitura dos termos do Artigo 1º fica nítido o interesse em estabelecer como principal objetivo o controle da inflação, é este o fundamental, deixando a suavização do nível de atividade (que não se confunde com metas de crescimento econômico que são fundamentais a toda estratégia de desenvolvimento socioeconômico) e o fomento ao pleno emprego como objetivos secundários ou acessórios. Tanto que o parágrafo único é taxativo quanto a isso, ao dizer “sem prejuízo de seu objetivo fundamental…”.

3.1.3 Política fiscal: sob pressupostos teóricos pré-keynesianos, inverte a causalidade entre os gastos públicos e o crescimento econômico

Um dos maiores equívocos do novo regime fiscal (PL 93/2023) consubstancia-se na inversão de causalidade entre os gastos públicos primários e o crescimento econômico. Em vez de utilizar o gasto público como fator de aceleração do nível de atividade econômica, o “arcabouço fiscal” mantém-se a espera do conhecimento das taxas de aumento do PIB quando divulgadas pelo IBGE para então estabelecer o quanto se poderia aumentar os gastos públicos primários. Em termos macroeconômicos, o novo regime fiscal cancela o papel contracíclico da política fiscal e, como já ocorria no “teto fixo” de gastos dos governos Temer e Bolsonaro, converte-a num restrito expediente de geração de saldos ficais primários para a União, secudarizando-a como instrumento efetivo de expansão dos níveis de atividade econômica e de geração de emprego e renda.

Seu objetivo primordial é satisfazer à drenagem rentista exercida pela alta finança bancária e usurária sobre o orçamento público, nada mais. Por isso os economistas que servem a este setor juntam-se e repetem, na grande mídia, o mesmo mantra sagrado da austeridade fiscal. Eles defendem cortes sistemáticos e permanentes nos gastos sociais, que são os gastos de legitimidade de todo Estado democrático de direito, pois constituem à devolução dos impostos pagos pela população brasileira em bens e serviços públicos que deveriam ser providos pelo governo, omitindo a verdade econômica, financeira e fiscal fundamental: que o alcance das metas de superávits fiscais primários não implica nem pressupõe a obtenção de superávits nominais e operacionais. Basta recordar que os 13 anos de superávits fiscais primários consecutivos, obtidos durante os governos Lula1, Lula 2 e Dilma 1, foram acompanhados, simultaneamente, por déficits nominais ou NFSP nominal positiva, na denominação do FMI.

No nível agregado da economia, isto é, no plano macroeconômico, não é possível que todos os setores de atividade estejam gastando menos do que recebem, sendo, portanto, simultaneamente superavitários, porque o superávit de um tem como contrapartida o déficit de outro. Por esta razão, o Estado não pode ser superavitário em todos os conceitos de NFSP, pois se isso acontecer, o setor privado estará em déficit estrutural. Disso se conclui que a permanência do déficit nominal é efetivamente funcional para a alta finança usurária, pois significa que o governo está transferindo recursos públicos da maioria da população para as elites rentistas e proprietários dos grandes bancos nacionais e estrangeiros.

Outro aspecto importante do modelo econômico brasileiro é o regime de câmbio flutuante que, juntamente com o regime de metas de inflação e o arcabouço fiscal do governo Lula 3, mantém o chamado “tripé” de política econômica. Assumido acriticamente e por fim sacralizado pelos economistas ortodoxos que atuam no setor bancário-financeiro, o “tripé” mantém a economia brasileira em crescimento lento e instável, contribuindo para os reduzidos ganhos de produtividade desde o início da adesão do Brasil ao consenso de Washigton nos anos 1990.

4. Conclusão: um modelo econômico antidesenvolvimento baseado na dívida pública

Dois setores econômicos são os principais ganhadores do modelo econômico institucionalizado no Brasil: o setor bancário-financeiro e o setor exportador de commodities. A indústria de transformação tem apresentado grandes dificuldades para elevar seus níveis de produtividade e de competitividade internacional num ambiente macroeconômico construído pelo e para esses dois setores ganhadores que, para isso, submetem o Estado nacional aos seus interesses imediatos e à revelia das necessidades dos demais setores de atividade econômica.

Se o Estado, pautado pela ideologia da austeridade fiscal, se abstém de aumentar o investimento público e de implementar medidas contracíclicas de estímulos à demanda, ele promoverá ainda mais as alocações improdutivas de capital que são a base da reprodução dos processos de financeirização. Consequentemente, o Estado brasileiro atua como porto seguro em um verdadeiro “paraíso financeiro” para uma minoria de bilionários, em sua maior parte, rentistas, enquanto penaliza as classes de média e baixa rendas com várias reformas ultraliberais, como a trabalhista, a previdenciária e a administrativa, além de outras reformas e políticas que também reduzem o bem-estar social e rebaixam as condições de vida da maioria da população brasileira.

Miguel Bruno é professor pesquisador do Programa de Pós-Graduação em População, Território e Estatísticas Públicasda Escola Nacional de Ciências Estatísticas-ENCE/IBGE e das Faculdades de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Mackenzie Rio, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

¹ Esse texto baseia-se amplamente nos trabalhos de Bruno (2021) e Bruno & Caffe (2017). Os dados empíricos que corroboram os principais argumentos encontram-se nesses dois trabalhos. Vide referências bibliográficas para outros trabalhos que permitiram fundamentar a análise aqui proposta.

² STREECK. W. (2013). The Politics of Public Debt. Neoliberalism, Capitalist Development and the Restructuring of the State. MPIfG Discussion Paper 13/7.

³ De acordo com dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), publicados em dezembro de 2023.

Referências bibliográficas

AGLIETTA, Michel. Régulation et crises du capitalism. Paris: Éditions Odile Jacob/Opus, 1997.

BOYER, Robert. (2015). Économie politique des capitalismes: théorie de la régulation et des crises. La Découverte, Paris, 2015

BOYER, Robert. Is a finance-led growth regime a viable alternative to Fordism? A preliminary analysis. Journal Economy and Society, v. 29, n. 1, 2000.

BRUNO, Miguel. A financeirização como limite estrutural ao desenvolvimento brasileiro: fundamentos teóricos, indicadores e prognósticos. Caderno da Reforma Administrativa. FONACATE, 2021.

BRUNO, Miguel & CAFFE, Ricardo. Estado e financeirização no Brasil: interdependências macroeconômicas e limites estruturais ao desenvolvimento. Economia e Sociedade, Campinas, v. 26, Número Especial, p. 1025-1062, dez. 2017

LIPIETZ, Alain. Audácia, uma alternativa para o século 21. Ed. Nobel, 1992.

STREECK. W. (2013). The Politics of Public Debt. Neoliberalism, Capitalist Development and the Restructuring of the State. MPIfG Discussion Paper 13/7.

FONTE MONITOR MERCANTIL

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