Ferramenta aplicada às prescrições de 775 pacientes mostra que em 36% dos casos havia excessos ou inadequações. O modelo sugere substituições, alternativas e até suspensão, indicando que há sobrecarga medicamentosa
Pesquisadores sob coordenação da Universidade McGill, no Canadá, conseguiram desenvolver uma ferramenta capaz de ajustar e até reduzir as doses de medicamentos prescritas para os idosos. Batizada de MedSafer, a tecnologia foi projetada para identificar medicamentos potencialmente desnecessários ou prejudiciais, contribuindo para uma prática cada vez mais necessária na geriatria: a desprescrição segura.
Testada em um estudo clínico por cinco instituições de cuidados prolongados na província canadense de New Brunswick, a plataforma auxiliou os profissionais de saúde a interromperem o uso de medicamentos inadequados em 36% dos pacientes. O número representa quase o triplo das desprescrições realizadas sem o suporte do sistema, evidenciando seu potencial como ferramenta clínica essencial para o cuidado de idosos.
Diferentemente de sistemas genéricos, o MedSafer foi desenvolvido para se encaixar perfeitamente na rotina médica, funcionando como uma lista de verificação clínica inteligente. A ferramenta analisa o histórico médico de cada paciente, suas condições de saúde e a lista completa de medicamentos em uso. A partir daí, sinaliza, automaticamente, quais remédios são inapropriados, justificando as decisões e fornecendo sugestões alternativas.
O estudo realizado com 725 idosos demonstrou que a adoção do MedSafer durante as revisões de rotina (geralmente realizadas a cada três meses nas casas de repouso) pode aumentar consideravelmente a taxa de desprescrição segura. A avaliação considerou fatores como histórico médico, idade, função renal, quadro cognitivo e risco de quedas, entre outros critérios clínicos cruciais para decisões mais precisas.
Saudáveis
Com o avanço da idade, é comum que os pacientes acumulem diagnósticos e, com eles, tratamentos. Esse acúmulo, muitas vezes desnecessário, pode levar ao que especialistas chamam de “cascata de prescrição” — um fenômeno em que medicamentos são prescritos para tratar efeitos colaterais causados por outros medicamentos. Isso cria um ciclo difícil de interromper, aumentando o risco de efeitos adversos graves, como confusão mental, quedas, tontura, perda de apetite e hospitalizações frequentes.
“Às vezes, culpamos o envelhecimento por sintomas como perda de memória ou mobilidade limitada, quando na verdade o culpado é o medicamento”, explica Emily McDonald, médica assistente no Centro de Saúde da Universidade McGill e uma das responsáveis pelo desenvolvimento do MedSafer. “Já vi pacientes passarem de quase insensíveis a voltarem a conversar após interromperem um sedativo”, acrescenta.
Idealizado por McDonald, em parceria com Todd Lee, professor associado de medicina na Universidade McGill, ambos do Instituto de Pesquisa do Centro de Saúde da instituição, o sistema inclui números e estatísticas, além de análises sobre a vida médica dos pacientes idosos. A retirada de certos medicamentos, especialmente os de ação sedativa ou com múltiplas interações, pode resultar em melhoras notáveis no humor, na cognição e na funcionalidade.
“Quanto mais medicamentos você toma, maior é o risco de efeitos adversos e interações perigosas”, explica Todd Lee. “Muitas vezes, os profissionais querem desprescrever, mas não sabem por onde começar. O MedSafer oferece um caminho claro e baseado em ciência.”
Para os pesquisadores, o uso de uma plataforma como essa não deve se restringir a instituições de cuidados prolongados. Eles defendem a expansão do sistema para a atenção primária à saúde, permitindo que a revisão de medicamentos ocorra antes que os idosos cheguem ao ponto de precisar de cuidados intensivos ou institucionalização.
A ausência de protocolos padronizados de desprescrição, somada à rotina acelerada dos serviços de saúde, muitas vezes impede uma análise criteriosa dos medicamentos utilizados pelos pacientes. O MedSafer entra, justamente, para preencher essa lacuna, oferecendo um suporte automatizado, personalizado e confiável para profissionais da saúde.
Com base em evidências clínicas atualizadas e diretrizes internacionais, a ferramenta já está em processo de licenciamento para uso mais amplo, o que pode representar uma virada na maneira como sistemas de saúde no Canadá — e em outros países — lidam com a polifarmácia em idosos. A integração de soluções digitais no campo da geriatria reforça uma tendência crescente de humanização do cuidado por meio da tecnologia. Ao oferecer apoio à tomada de decisão clínica, o MedSafer permite que médicos atuem com mais confiança e precisão, reduzindo riscos e potencializando benefícios terapêuticos.
Para McDonald e Lee, o projeto é, também, uma forma de devolver autonomia e qualidade de vida a uma população frequentemente vulnerável. “O que queremos é que cada idoso seja tratado com o cuidado e a atenção que merece. E isso começa por garantir que os medicamentos que ele toma todos os dias estejam, de fato, ajudando — não atrapalhando”, conclui a pesquisadora.
QUATRO PERGUNTAS PARA
Clóvis Cechinel, geriatra do Hospital São Marcelino Champagnat, em Curitiba/PR
Na sua prática clínica, qual a frequência de casos de polifarmácia entre idosos?
A frequência de polifarmácia nos idosos depende muito do cenário avaliado. Em idosos de atenção primária, em torno de 40% utilizam polifarmácia, que é o uso de pelo menos cinco medicações diferentes. E há também a hiper polifarmácia, que é o uso de mais de 10 medicações, que gira em torno de 5% dos idosos. No entanto, pensando no cenário hospitalar, esse número pode ser muito maior.
Existe, atualmente, alguma ferramenta digital ou protocolo institucional que auxilie na revisão medicamentosa em sua rotina?
Existem vários protocolos para a desprescrição, ou seja, para tirar medicamentos que tem mais malefícios do que benefícios para o idoso. Dentre essas escalas, existem a escala de start e a escala de stop.
Você acredita que ferramentas como o MedSafer poderiam ser úteis na prática clínica brasileira? Por quê?
Há os critérios de prescrição de medicamentos inapropriados que são os critérios de Beers, que é uma tabela que é frequentemente atualizada e direciona os medicamentos que podem, potencialmente, causar algum malefício. Essas orientações são importantes na prática clínica e direcionam uma desprescrição ou uma otimização terapêutica desses idosos.
Quais barreiras você identifica para uma prática mais ativa de revisão e retirada de medicamentos em idosos?
A grande dificuldade de uma otimização terapêutica é a falta de conhecimento desses malefícios entre os profissionais que atendem esses idosos. Uma outra causa importante é o poder aquisitivo da população em fazer a substituição de um de um medicamento potencialmente inapropriado para um medicamento que seja mais seguro na prescrição e na prática ao idoso.
Pelo menos 1,6 bi no mundo
Só no Brasil, 15% da população, cerca de 32.113.490 pessoas são consideradas, tecnicamente, idosas, pois estão acima dos 66 anos. No mundo, já 1,6 bilhão de idosos. Muitos sofrem com problemas de hipertensão, colesterol alto e diabetes, diagnósticos frequentes na terceira idade, exigindo prescrições específicas.
Fonte https://www.correiobraziliense.com.br/